Disposições legais em relação à liberdade religiosa e aplicação efectiva
Há aproximadamente o mesmo número de Muçulmanos sunitas e de Muçulmanos xiitas no Líbano (cerca de 30% cada, com pequenas percentagens de alauítas e ismaelitas). Os Cristãos representam aproximadamente 30% da população, a maior percentagem de cristãos no mundo árabe (estas percentagens referem-se apenas a cidadãos libaneses residentes, excluindo a população predominantemente sunita palestiniana e síria).
Existem 18 comunidades religiosas registadas oficialmente: cinco grupos muçulmanos (xiitas, sunitas, drusos, alauítas e ismaelitas), 12 grupos cristãos (maronitas, ortodoxos gregos, católicos gregos, católicos arménios, ortodoxos arménios, ortodoxos siríacos, católicos sírios, assírios, caldeus, coptas, protestantes evangélicos e católicos romanos), e judeus. Os Bahá’ís, Budistas, Hindus, vários grupos protestantes, e a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias não são oficialmente reconhecidos.
A demografia religiosa está no centro da vida política do país. As mudanças demográficas têm grandes implicações políticas. Por esta razão, não foi realizado qualquer censo desde 1932. Os grupos confessionais que estão em declínio demográfico temem o que poderia acontecer à sua representação política se fossem conhecidos os números reais.
O Líbano é uma república parlamentar que não tem religião oficial, mas formalmente não é um Estado secular. O sistema político é confessional e reserva os postos políticos mais elevados às várias comunidades, de acordo com critérios bem definidos: a presidência da República cabe a um cristão maronita, a presidência do conselho de ministros cabe a um muçulmano sunita e a presidência do Parlamento cabe a um xiita. As comunidades religiosas estão representadas no Parlamento de acordo com quotas fixas.
A Constituição do Líbano prevê a liberdade religiosa. De acordo com o artigo 7.º, “todos os Libaneses são iguais perante a lei”. O artigo 9.º afirma que “a liberdade de consciência é absoluta”. E refere ainda: “Ao assumir as obrigações de glorificar Deus, o Altíssimo, o Estado respeita todas as religiões e salvaguarda a liberdade de exercer os ritos religiosos sob a sua protecção, sem perturbar a ordem pública. E também garante o respeito pelo sistema de estatuto pessoal e interesse religioso das pessoas, independentemente dos seus diferentes credos.”
O artigo 10.º diz: “A educação é livre desde que não perturbe a ordem pública, não infrinja a moral e não afecte a dignidade de qualquer religião ou credo. Os direitos das comunidades a estabelecerem as suas próprias escolas privadas não podem ser violados, desde que cumpram os requisitos gerais definidos pelo Estado em relação à educação pública.”
A 9 de Março de 2020, o presidente Michel Aoun apoiou a ideia de uma lei unificada de estatuto pessoal que substituísse as leis actuais de estatuto pessoal baseadas na filiação religiosa. Mas não foram tomadas outras medidas.
O Código Penal libanês criminaliza a blasfémia e os insultos contra o nome de Deus e as práticas de qualquer religião com uma pena de prisão máxima de um ano, mas estes conceitos não estão claramente definidos. A difamação e o desprezo pela religião podem ser penalizados com uma pena de prisão máxima de três anos.
A conversão de uma religião para outra é legal. Contudo, um alto funcionário da religião a que a pessoa gostaria de se converter tem de autorizar a mudança. A pessoa poderá então registar a nova religião na Direcção do Estatuto Pessoal do Ministério do Interior. Os convertidos podem enfrentar uma forte resistência social e mesmo, em alguns casos, ameaças.
As questões do foro pessoal da lei privada (como por exemplo casamento, parentalidade, heranças) são tratadas nas jurisdições separadas de cada uma das 18 comunidades religiosas reconhecidas pelo Estado (12 cristãs, cinco muçulmanas e uma judia).
Cada comunidade possui a sua própria jurisdição e gere as suas próprias organizações de assistência social e instituições educativas. Contudo, certas comunidades religiosas no Líbano (Yazidis, Bahá’ís, Budistas e Testemunhas de Jeová) não são legalmente reconhecidas e, por isso, não têm direitos enquanto grupos institucionais. Os membros destes grupos são obrigados a declararem-se como membros de grupos religiosos reconhecidos nos registos governamentais, a fim de garantir que o seu casamento e outros documentos de estatuto pessoal permanecem legalmente válidos. No entanto, estão autorizados a realizar livremente os seus ritos religiosos.
Os membros de comunidades religiosas não reconhecidas, ou aqueles que possam querer ter um casamento civil, têm de o fazer no estrangeiro. Mas, quando isto acontece, a lei relativa ao seu casamento e os seus efeitos são os do país onde o casamento civil foi celebrado. Esta é uma questão em debate e tem havido repetidas tentativas por parte de alguns grupos da sociedade civil e grupos de direitos humanos no sentido de pressionar para a adopção oficial do casamento realizado no estrangeiro. Os casamentos civis são raros devido a dificuldades administrativas e legais e, quando acontecem, são notícia de primeira página.
A 10 de Setembro de 2021, o primeiro-ministro Najib Mikati anunciou um novo Governo. O gabinete era composto por 22 ministros: 5 maronitas, 2 ortodoxos gregos, 2 católicos gregos, um apostólico arménio, e um católico de rito latino.
A 15 de Maio de 2022, realizaram-se eleições legislativas. Embora a situação geral tenda a permanecer como antes, tiveram lugar algumas mudanças. Significativamente, apesar de mais de 80% dos 128 assentos parlamentares continuarem a ser ocupados por partidos tradicionais, o grupo do Hezbollah perdeu a sua maioria e os independentes aumentaram de um para 13 lugares. Na altura em que escrevemos, o novo Governo ainda não foi formado. No final de Outubro de 2022, o presidente libanês Michel Aoun retirou-se do cargo sem sinais de um sucessor iminente, deixando o país sem presidente e sem ministros.
O Líbano tem o maior número de refugiados sírios per capita do mundo, com um número estimado em 1,5 milhões. Acolhe também mais de 479 mil refugiados palestinianos sob o mandato da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados e Obras Públicas (segundo a UNRWA). O elevado número de refugiados causa tensão e angústia entre as comunidades cristãs, que temem que a sua proporção continue a diminuir em comparação com a dos Muçulmanos.
Incidentes e episódios relevantes
Num país onde a política e a religião estão estreitamente interligadas, o direito à liberdade religiosa depende da política interna, que em grande medida depende das acções de elementos regionais e internacionais mais vastos.
A 1 de Julho de 2021, líderes cristãos de várias Igrejas e comunidades cristãs do Líbano reuniram-se no Vaticano com o Papa Francisco para um dia de oração e reflexão sobre a situação no país.
A 14 de Outubro de 2021, violentos confrontos irromperam na zona cristã Tayyouneh de Beirute, onde se situa o Palácio da Justiça. Uma manifestação de apoiantes do Hezbollah e do Movimento Amal exigiu a demissão de Tareq Bitar, o juiz encarregado da investigação da explosão do porto de Beirute em Agosto de 2020, acusando-o de politização da investigação e de parcialidade. Segundo testemunhas, e como se viu nas redes sociais, quando os apoiantes xiitas chegaram à zona cristã, causaram danos materiais e gritaram "xiitas! xiitas!". Os atiradores furtivos começaram a disparar. Num relatório do Carnegie Middle East Centre, Malcolm H. Kerr declara: "Ainda não está claro se os disparos dos atiradores foram uma reacção à entrada dos jovens no bairro ou um esforço premeditado para avisar o Hezbollah e Amal de que já não entrariam nos bairros cristãos sem pagar um preço por isso. Muito provavelmente, foi uma mistura de ambos". Pelo menos sete pessoas foram alegadamente mortas e mais de 30 feridas.
Alguns dias antes, a 11 de Outubro, o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, tinha apelado à remoção de Bitar. No dia seguinte, durante uma reunião do conselho de ministros, os ministros do Hezbollah e Amal exigiram novamente a demissão de Bitar, ameaçando a sua demissão do Governo. No final de Janeiro de 2022, porém, "em resposta às necessidades dos cidadãos" e para "evitar serem acusados de obstrução", regressaram ao Governo.
A 5 de Novembro de 2021, pela primeira vez, o Embaixador libanês em França organizou em Paris uma recepção com judeus libaneses. A iniciativa foi apresentada para "saudar a diáspora judaica libanesa como um símbolo do papel do Líbano como farol da civilização e da tolerância no mundo árabe". Cerca de 50 judeus libaneses participaram nesta "reunião de família". Embora muitos o considerassem como um passo positivo, uma aproximação à comunidade, a iniciativa foi também recebida com condenação. Entre os artigos publicados sobre o evento, o historiador libanês Nagi Gerji Zeidan, que escreveu o livro Juifs du Liban (Judeus do Líbano), aproveitou a ocasião para descrever os contínuos desafios administrativos enfrentados pelos judeus libaneses (nomeadamente: tentar renovar os seus passaportes ou emitir certidões de nascimento, etc.).
A 20 de Dezembro de 2021, o Cardeal Bechara Al-Rai, o Patriarca ortodoxo grego John X Yazigi, os católicos arménios apostólicos Aram da Cilícia, e representantes das comunidades sunita, xiita e drusa encontraram-se com o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, durante a sua visita ao Líbano. Numa declaração conjunta, insistiram num "compromisso de abertura, tolerância e coexistência como a essência da identidade e estabilidade do Líbano". Realçaram a importância "de se concentrarem naquilo que une o Líbano e reúne o seu povo" encorajando as suas comunidades "a fazer o mesmo e a adoptar o diálogo como um meio de resolver as diferenças num espírito de consenso e de união".
Durante a sua visita ao Líbano, de 31 de Janeiro a 4 de Fevereiro de 2022, o Arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário do Vaticano para as Relações com os Estados, disse que a Santa Sé já estava "a estudar a possibilidade de uma visita [papal], talvez mesmo até ao final do ano". Embora inicialmente prevista para Junho de 2022, devido a razões de saúde a visita foi adiada.
No meio da extraordinária crise financeira, o Arcebispo Gallagher criticou os políticos libaneses e apelou ao fim "dos poucos a lucrar com o sofrimento de muitos". Condenando a interferência externa nos assuntos do Líbano, apelou ainda a "deixar de utilizar o Líbano e o Médio Oriente para fins de interesse e lucro externos". Embora não tenha mencionado explicitamente o Hezbollah apoiado pelo Irão, estas declarações foram feitas num contexto em que os países do Golfo estão a retirar-se do Líbano devido à influência do Hezbollah no país (até há pouco tempo detendo a maioria no Parlamento, controlando uma milícia que se crê ser mais poderosa do que o exército, e procurando influenciar a política interna e externa). O Arcebispo Gallagher acrescentou que a Santa Sé estaria pronta a acolher um diálogo entre diferentes actores, se todas as partes concordassem.
A 21 de Março de 2022, durante uma visita de três dias a Itália, o presidente Michel Aoun encontrou-se com o Papa Francisco. À sua chegada a Roma, declarou que "o Cristianismo no Líbano não está em perigo".
Após as eleições parlamentares de 15 de Maio de 2022, três deputados sunitas recém-eleitos, Halime Kaakour, Ibrahim Mneimne e Waddah Sadek declararam na televisão o seu apoio ao casamento civil. O Xeque Hassan Merheb, inspector-geral adjunto de Dar al-Fatwa, a mais alta autoridade sunita do país, acusou-os de "não representarem os sunitas". Merheb pediu aos crentes para "cuspir-lhes na cara" se não mudassem de ideias sobre o assunto. A 10 de Julho de 2022, um casal libanês druso-xiita celebrou um casamento civil online.
Em Junho de 2022, o Patriarca Al-Rai solicitou à comunidade internacional que ajudasse a encontrar uma solução para os refugiados palestinianos e sírios deslocados no Líbano. Insistiu nos "sentimentos humanos e fraternos que temos por estes dois povos fraternos", acrescentando que eles "não invalidam o pensamento nacional no interesse do Líbano". Estas declarações suscitaram críticas por parte de certos grupos.
A 18 de Julho de 2022, Moussa Al-Hage, Arcebispo maronita de Haifa e Jerusalém, que reside em Jerusalém, foi detido pela Segurança Geral libanesa por ordem do juiz do tribunal militar Fadi Akiki. Foi libertado após ser interrogado durante 12 horas e foi forçado a entregar o seu passaporte e telemóvel juntamente com 460 mil dólares e medicamentos. O dinheiro e os medicamentos foram enviados por famílias de origem libanesa residentes em Israel para os seus familiares no Líbano. A Segurança Geral disse que as medidas tomadas em relação ao arcebispo eram legais e "sob as instruções do poder judicial, em relação a [...] todos os passageiros que viajam entre os dois países, sem excepções". Mas os funcionários da Igreja declararam que o incidente cria um grave precedente. "Nem princípios, nem leis, nem costumes permitem tal detenção", acrescentando que um arcebispo não pode ser detido sem consultar a sua autoridade hierárquica. Al-Hage declarou mais tarde, numa entrevista, que a sua prisão se destinava claramente a "enviar uma mensagem forte ao Patriarca" que aumentou as suas críticas ao Hezbollah e continua a apelar à afirmação da neutralidade do Líbano. Os Ordinários Católicos da Terra Santa (ACOHL) emitiram uma declaração em que lamentaram a detenção Al-Hage. Expressaram também a sua solidariedade para com Al-Hage "no trabalho de caridade que tem vindo a realizar generosamente, há muito tempo, trazendo regularmente ajuda material e medicamentos recolhidos por benfeitores a favor de famílias libanesas pobres de todas as religiões, cristãos, muçulmanos e drusos". Apoiaram ainda uma declaração do Patriarca Maronita, assinada pelo Patriarca Latino de Jerusalém, Pierbattista Pizzaballa e pelo Pe. Marcelo Gallardo, secretário-geral ACOHL, concluindo: "Desejamos e pedimos que a Igreja da Terra Santa continue o seu trabalho de comunhão, que de modo algum é ditado por considerações políticas, e que é necessário para a manutenção da presença dos Cristãos na Terra Santa, favorecendo a sua solidariedade para com os Cristãos do Médio Oriente, [e que lhe permita] continuar a realizar livremente, sem interferências, o seu trabalho humanitário em favor dos pobres".
A 12 de Agosto de 2022, o escritor Salman Rushdie foi esfaqueado por Hadi Matar, um libanês-americano de 24 anos. Cresceu nos Estados Unidos e em 2018 tinha ido visitar o seu pai, que vive na aldeia libanesa do sul de Yaroun, sob o controlo do Hezbollah. O ataque provocou reacções mistas no seio da população xiita do Líbano. Circulou novamente um vídeo mais antigo do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, no qual ele afirmava que "ninguém se atreveria a atacar novamente o Profeta Maomé do Islão" se Rushdie tivesse sido morto imediatamente após a fatwa de Khomeini de 1989. Embora não houvesse reacções oficiais nem do Hezbollah nem dos movimentos Amal, a maioria dos seus apoiantes celebrou o ataque nas redes sociais. Por outro lado, algumas vozes xiitas condenaram a agressão contra Rushdie. A proeminente jornalista xiita Dima Sadek recebeu ameaças de violação e morte nas redes sociais depois de ter publicado no seu Twitter uma foto de Khomeini e do general Qassim Soleimani (um general iraniano de topo morto num ataque dos EUA em 2020), com a legenda "versículos satânicos".
O jornalista xiita Mohamad Barakat também foi atacado depois de escrever que ao apunhalar Rushdie, Hadi Matar "apunhalou os xiitas que vivem na Europa e na América". Por outro lado, Radwan Akil, jornalista do diário An-Nahar, disse que compreendia a fatwa contra Rushdie, mas condenou a morte de qualquer pessoa. O An-Nahar também publicou uma declaração afirmando que um apelo ao assassinato contradiz as suas políticas. Embora os líderes políticos não tenham comentado o ataque de Rushdie, Mohammad Mortada, ministro da Cultura xiita, próximo do movimento Amal, criticou a representação do profeta feita por Rushdie e declarou no seu relato no Twitter que "a liberdade de expressão deve ser educada".
Perspectivas para a liberdade religiosa
O Líbano continua a ser um país de crises não resolvidas. As sombras sempre presentes da guerra civil de 1975-1990; a agitação social e política de Outubro de 2019; a crise bancária e a perda da maioria das poupanças pertencentes aos depositantes libaneses; a extrema desvalorização da moeda local com a sua consequente miséria da classe média; a crise da COVID-19; a devastadora explosão portuária a 4 de Agosto de 2020, com impacto principalmente nos bairros e comunidades cristãs, deixaram profundas cicatrizes e desilusão, particularmente entre os jovens.
No final de Outubro de 2022, o presidente maronita Michel Aoun deixou o cargo sem sucessor, deixando uma lacuna na presidência. O país não tem agora liderança política: não tem ministros (apenas zeladores), não tem presidente, e não tem perspectivas de concordar com as reformas exigidas pelo FMI, necessárias para um salvamento.
Hoje em dia, a maioria dos licenciados cristãos deixam o país depois da universidade, roubando ao país o seu talento e perturbando o delicado equilíbrio demográfico. A emigração (e as taxas de natalidade desiguais entre as diferentes comunidades religiosas), está a criar um desequilíbrio na composição confessional até agora relativamente equilibrada, que serve de base ao acordo de partilha do poder. A preocupação entre os líderes é que o declínio da população cristã, que até à data tem garantido uma certa voz a todas as comunidades religiosas no seio da paisagem política do Líbano, juntamente com o crescente poder político do Hezbollah e a influência do Irão, está a ameaçar a posição do Líbano como uma sociedade relativamente livre e democrática na região. À medida que estas condições se deterioram, também as perspectivas de pleno gozo do direito fundamental à liberdade de pensamento, consciência e religião se deterioram.