Disposições legais em relação à liberdade religiosa e aplicação efectiva
O acordo de paz de Dayton de 1995 pôs fim à guerra de 1992-95, estabelecendo a Federação da Bósnia-Herzegovina, que ocupa as zonas oeste e central, maioritariamente católicas e muçulmanas, e a República de Srpska, maioritariamente ortodoxa, localizada no norte e no leste. Ambas as regiões têm o seu próprio presidente, Governo, Parlamento e polícia. Além disso, há ainda o distrito de Brčko no nordeste do país, uma unidade administrativa autónoma estabelecida em 1999 e gerida pelas outras duas entidades.
Acima destas entidades está um Governo centralizado com uma presidência rotativa de três membros (artigo 5.º). O anexo 4 do Acordo de Dayton estabelece a Constituição da Bósnia-Herzegovina.
A maior parte dos cidadãos da Bósnia-Herzegovina identificam-se a si próprios com um perfil étnico frequentemente ligado a uma religião específica: croatas católicos, sérvios ortodoxos e bósnios muçulmanos. Da última vez que o perfil étnico foi documentado (no recenseamento populacional de 2013), a distribuição era a seguinte: bósnios 50,11%; sérvios 30,78%; croatas 15,43%; outros 2,73%; não declarado 0,77%; não responde 0,18%.
A Bósnia-Herzegovina é um Estado secular sem religião estatal. A Lei da Liberdade Religiosa e da Posição Legal das Igrejas e Comunidades Religiosas na Bósnia-Herzegovina foi adoptada em 2004.
Esta lei prevê a liberdade religiosa (artigo 4.º, n.º 1), garante o estatuto legal das Igrejas e comunidades religiosas (artigo 2.º, n.º 3) e proíbe quaisquer formas de discriminação contra qualquer grupo religioso (artigo 2.º, n.º 1). Além disso, prevê as bases para o relacionamento entre o Estado e as comunidades religiosas (capítulo IV).
A mesma lei (artigo 16.º, n.º 1) também obriga à manutenção de um registo de todos os grupos religiosos no Ministério da Justiça, enquanto o Ministério dos Direitos Humanos e dos Refugiados tem por função documentar violações à liberdade religiosa. A lei reconhece quatro comunidades religiosas e Igrejas tradicionais: a Comunidade Islâmica, a Igreja Ortodoxa Sérvia, a Igreja Católica Romana e a Comunidade Judaica (artigo 8, n.º 2).
De acordo com a lei, qualquer grupo de 300 cidadãos adultos pode registar-se para ser reconhecido como uma nova igreja ou comunidade religiosa. Para tal, deve candidatar-se por escrito ao Ministério da Justiça (artigo 18.º, n.º 1 e 2). Este ministério deve emitir uma decisão no prazo de 30 dias após o pedido e pode haver recurso da decisão para o Conselho de Ministros.
A lei reafirma o direito de cada cidadão a ter educação religiosa. Os representantes oficiais das várias Igrejas e comunidades religiosas têm a responsabilidade de ensinar Estudos Religiosos em todas as pré-escolas públicas e privadas, escolas primárias e universidades (artigo 4.º, n.º 1).
O Acordo Básico entre a Santa Sé e a Bósnia-Herzegovina foi assinado a 19 de Abril de 2006 e entrou em vigor a 25 de Outubro de 2007. O acordo reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica (artigo 2.º) e concede vários direitos, incluindo o direito a estabelecer escolas (artigo 14.º, n.º 1) e instituições de caridade (artigo 17.º, n.º 1), a disponibilizar educação religiosa em todas as escolas (artigo 16.º, n.º 1), e reconhece oficialmente as principais festas católicas (artigo 9.º, n.º 1). O acordo também inclui a criação de uma Comissão Mista para lidar com outras questões (artigo 18.º, n.º 2). No entanto, durante o período abrangido pelo relatório mais recente, o Governo não restabeleceu a comissão conjunta após a mudança de Governo. Da mesma forma, não conseguiu restabelecer a comissão conjunta com a Igreja Ortodoxa Sérvia durante o mesmo período.
A 6 de Janeiro de 2010, a Comunidade Islâmica submeteu a sua proposta para um acordo com o Estado. Em 2015, a proposta foi aprovada pelo Conselho de Ministros e enviada para a Presidência para aprovação final, mas o texto final ainda não foi implementado. Durante o período abrangido pelo relatório, o novo Governo ainda não tinha tomado em consideração o acordo.
Sob o regime comunista, o Estado confiscou bens pertencentes a Igrejas e comunidades religiosas e por elas administrados. A Lei da Liberdade Religiosa (artigo 12.º, n.º 3) reconhece esta situação, bem como o direito das comunidades religiosas à restituição dos bens religiosos expropriados. Ao contrário de outras antigas repúblicas jugoslavas, o Parlamento da Bósnia-Herzegovina ainda não legislou sobre o assunto, apesar de apelos da União Europeia para o fazer. Não tem havido progressos nos esforços para adoptar legislação que facilite a restituição durante o período abrangido pelo presente relatório.
A criação de um Conselho Inter-religioso em 1997 foi um ponto de viragem na história religiosa do país. Este conselho continua activo e pretende criar uma autêntica base para a estima mútua, a cooperação e a liberdade no país.
Incidentes e episódios relevantes
A ligação íntima entre a identidade religiosa e a etnicidade na Bósnia-Herzegovina torna frequentemente difícil distinguir a diferença entre animosidade étnica e religiosa. Os incidentes de crimes de ódio baseados na religião/etnia continuaram a prevalecer de forma perturbadora durante o período abrangido por este relatório.
Em 2021, o Conselho Inter-religioso da Bósnia-Herzegovina registou 23 actos de vandalismo em edifícios religiosos e três ataques contra funcionários religiosos, mas disse que o número de incidentes reais era provavelmente muito superior. Os ataques relatados pelo conselho incluem: tiros disparados contra a Mesquita Aladza em Foca em Fevereiro; pintura de graffiti anti-cristão nas paredes da Igreja de Santo António em Bihac em Maio; vandalização da Igreja Ortodoxa Anunciação da Santa Mãe de Deus e de locais de sepultamento religiosos perto de Kupres em Agosto; vandalização de uma janela e pintura de graffiti nas paredes de uma mesquita e cemitério muçulmano em Prozoru em Setembro; a profanação da Igreja de Santo Elias em Trebevic em Setembro; ameaças contra uma família católica e vandalização do seu apartamento em Porodici em Dezembro; vandalização de uma capela na povoação de Stup em Sarajevo em Dezembro; vandalização de uma mesquita em Trebinje também em Dezembro; pintura de discursos do ódio em Prijedor em Dezembro; saque e profanação da Igreja de Sta. Barbara em Vares em Dezembro; e vandalização das mesquitas perto de Bugojna e Gornji Vakuf-Uskoplje também em Dezembro.
A base de dados de crimes de ódio da OSCE indica que a polícia relatou 15 crimes de ódio contra cristãos (sendo a maioria ameaças e danos materiais), 11 crimes de ódio contra muçulmanos (sendo a maioria ameaças e incitação à violência), um crime de ódio anti-semita relacionado com comportamento ameaçador, e um crime de ódio baseado numa religião ou crença não especificada em 2021. Outras fontes na Bósnia-Herzegovina relatam 34 incidentes de ódio contra muçulmanos, 25 contra cristãos, e cinco anti-semitas em 2021. A maioria dos incidentes envolveu vandalismo ou grafitti, vários dos quais envolveram a representação de suásticas.
A Comissão Europeia informa ainda que foram registados 134 incidentes de ódio relacionados com a etnia em 2021, e que foram pronunciadas oito condenações em 2021. Foram também apresentados 70 relatórios e 11 sentenças, das quais oito condenações, foram proferidas por discurso de ódio em 2021.
A Comunidade Judaica da Bósnia-Herzegovina também relatou um aumento significativo de discursos anti-semitas online durante o período relevante do relatório.
Embora tenha havido vários casos comunicados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) ao Governo da Bósnia-Herzegovina relativos a tensões regionais e étnicas, nenhum deles está directamente relacionado com a liberdade religiosa. Não houve julgamentos adversos contra a Bósnia-Herzegovina por parte do TEDH em relação à liberdade religiosa durante o período abrangido pelo presente relatório.
Muitos dos combatentes muçulmanos estrangeiros que entraram durante a guerra civil, na década de 1990, para lutar ao lado de muçulmanos bósnios nunca saíram. Estes tendem a ser wahhabi, muito conservadores, e recebem financiamento de fundações e instituições de caridade sauditas. Isto levou a disputas e confrontos entre muçulmanos mais moderados, muçulmanos locais e pessoas de fora com opiniões mais radicais sobre o Islão.
Subsistem tensões relativamente a outras fontes de visões islâmicas radicais. O regresso à Bósnia-Herzegovina dos combatentes bósnios que aderiram ao grupo do autoproclamado Estado Islâmico é também uma fonte de preocupação devido à incoerência entre a lei e a cidadania dos combatentes. Em Janeiro de 2020, a Presidência do país decidiu autorizar os seus cidadãos a regressar a casa. Ao mesmo tempo, ao abrigo de uma lei que tornou a participação em guerras estrangeiras um crime, os tribunais locais julgaram e condenaram 26 combatentes bósnios do autoproclamado Estado Islâmico a partir de Janeiro de 2020.
Embora a migração em massa e as questões fronteiriças tenham sido um problema significativo durante o último período abrangido por este relatório, a Comissão Europeia elogiou recentemente a Bósnia-Herzegovina pelas suas políticas de gestão da migração que incluem uma melhor coordenação local e internacional. No entanto, a Comissão reconheceu que ainda há muito a fazer.
No Apelo da Comissão Justiça e Paz da Conferência Episcopal da Bósnia-Herzegovina por ocasião do Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de Dezembro de 2021), foi declarado: "A Bósnia-Herzegovina é um dos poucos países da Europa sem a Lei de Restituição de Propriedade. A propriedade, confiscada pela promulgação de leis injustas durante o período do sistema político socialista-comunista, há muito que é vendida ou comprada, muitas vezes sem os seus legítimos proprietários. A desordem das directivas legais nesta área está também relacionada com a questão da nova Lei das Entidades sobre a Pesquisa e o Cadastro. Segundo esta lei, a terra e a propriedade são registadas ao actual utilizador ou à propriedade social (municipal, urbana), simplesmente estabelecendo a situação factual, independentemente de certos bens terem sido anteriormente confiscados ou nacionalizados ou de os seus proprietários terem sido expulsos e despejados durante a última guerra".
Alguns meios de comunicação social alegaram erroneamente que o Processo U9/21, decidido a 2 de Dezembro de 2021, dizia respeito a uma proibição militar de uso de lenços de cabeça e o Tribunal Constitucional sentiu a necessidade de esclarecer esta questão. Em Janeiro de 2020, Emela Mujanovic, membro das forças armadas bósnias, apresentou um processo contra o Ministério da Defesa pela recusa deste em permitir-lhe o uso de um hijab em serviço. O Tribunal Constitucional tomou a extraordinária medida de emitir um comunicado de imprensa esclarecendo que o caso U9/21 tratava apenas do direito de usar barba nas forças armadas.
A 9 de Janeiro de 2022, na Republika Srpska, no Dia da Republika Srpska, que corresponde a um feriado ortodoxo sérvio, foram registados na região inúmeros casos de ameaças e discursos de ódio contra os bósnios.
A Conferência Episcopal da Bósnia-Herzegovina publicou a 9 de Maio de 2022 um "Memorando sobre a necessidade de estabelecer justiça e harmonia social e sobre o estado actual da Igreja Católica e do povo Croata na Bósnia-Herzegovina", no qual enfatiza os problemas relativos à liberdade religiosa: "Há inúmeras questões por resolver na área das relações das autoridades estatais com a Igreja Católica e outras comunidades religiosas, entre as quais a assistência pastoral na área da saúde, o trabalho pastoral nos serviços de polícia e nas prisões, a questão dos dias não laborais durante os feriados religiosos, o seguro de saúde para os membros da Igreja, a lei sobre a restituição de bens confiscados, a compensação pela utilização de bens confiscados, a política fiscal pouco clara relativamente à actividade sem fins lucrativos de entidades jurídicas eclesiásticas, o método de financiamento de escolas e instituições de beneficência, a questão do funcionamento de instituições de beneficência, a incerteza jurídica dos bens dados à Igreja apenas para utilização, a contestação de licenças de construção de igrejas, etc."
Em Maio de 2022, em resposta aos esforços da Republika Srpska para se distanciar da supervisão nacional, o Tribunal Constitucional decidiu que as entidades da Bósnia-Herzegovina não têm o direito de se retirar unilateralmente dos acordos existentes com o objectivo de transferir competências específicas para o nível estatal. O líder sérvio bósnio, Milorad Dodik, prometeu desafiar esta ordem. Além disso, os esforços de formação do Governo foram prejudicados pela recusa do principal partido croata (HDZ BiH) em concordar com as reformas necessárias na lei eleitoral, levando à instabilidade das instituições nacionais.
Durante 2022, a Agência Católica de Imprensa da Conferência Episcopal da Bósnia-Herzegovina relatou vários roubos e ataques a edifícios da Igreja. Alguns exemplos incluem o assalto às instalações do escritório paroquial em Banja Luka; danos a monumentos, cruzes e pinturas na capela do cemitério em Kakanj; danos a seis das 14 estações da Via Sacra em Drijenča.
Em Junho de 2022, 700 memoriais gravados no cemitério de Mostar foram destruídos num acto de vandalismo em grande escala.
No mesmo mês, o Conselho Europeu afirmou a sua disponibilidade para dar à Bósnia-Herzegovina o estatuto de país candidato à União Europeia.
Perspectivas para a liberdade religiosa
A Bósnia-Herzegovina é um país profundamente dividido e está longe de ser económica e politicamente estável. Num país onde a identidade etno-religiosa é tão importante – e onde, consequentemente, existe uma divisão em torno desta linha –, é pouco provável que os direitos humanos encontrem um terreno fértil nos próximos dois anos, incluindo a liberdade religiosa. Uma sondagem das Nações Unidas, por exemplo, indicou que 90% dos inquiridos de todos os grupos étnicos e religiosos expressaram orgulho na sua identidade religiosa.
Os incidentes de zelo étnico, particularmente por parte dos líderes políticos da República Srpska, estão a conduzir a uma maior instabilidade no país. Como a religião está tão intimamente ligada à etnicidade, e a memória nacional relativamente à Guerra da Bósnia ainda está fresca, as perspectivas de liberdade religiosa permanecem intimamente ligadas à estabilidade política e social, a ser mantida sob observação.